sexta-feira, 15 de novembro de 2019

RELAÇÃO ENTRE A ATIVIDADE DE CAÇA E A ENDEMICIDADE DA ONCOCERCOSE EM WATATAS - XITEI / XIDEA, RORAIMA, BRASIL

RELAÇÃO ENTRE A ATIVIDADE DE CAÇA E A ENDEMICIDADE DA ONCOCERCOSE EM WATATAS - XITEI / XIDEA, RORAIMA, BRASIL
Layme,V.M.G. & Py-Daniel,V.

(Laboratório de EtnoEpidemiologia Coordenação de Pesquisas em Ciências da Saúde, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia)


RESUMO


A caça além de sua importância na subsistência pode influenciar indiretamente aspectos da saúde de populações tradicionais. Neste trabalho relacionamos as movimentações de caçada Yanomami ao risco de re-infecção por oncocercose em uma área. Foi observada uma maior intensidade de  caçadas em períodos do ano em que os vetores são mais abundantes. Também houve uma correlação positiva entre o risco de re-infecção e o retorno energético das caçadas. É possível que a inclusão de fatores ecológicos e sociais, tais como movimentações e os fatores que as determinam, ajudem na modelagem de doenças em populações humanas.

PALAVRAS CHAVES
Migração, endemicidade, oncocercose,Yanomami,caça

 ABSTRACT
Hunting, beyond its importance in subsistance, may indirectly influence some health aspects in traditional populations. In this work we relate Yanomami hunting movements to the risk of oncocercose re-infection in one area. It was observed a higher intensity in hunting during year periods where vectors are more abundant. There was also a positive correlation between the risk of re-infection and energetic of hunting . It is possible that ecological and social reasons, such as moving and the reasons that determine it, may help in the modeling of diseases in human populations.


KEY WORDS
Migration, endemicIty, onchocerciasis, Yanomami, hunt.

INTRODUÇÃO
As movimentações humanas desempenham um papel fundamental na propagação e disseminação de doenças, diretamente através do transporte de vetores e migração de pessoas infectadas ou indiretamente através do aumento dos aglomerados urbanos (Schatzmayr, 2001; Tauil, 2001). Em recente trabalho Joy et al. (2003) demonstraram que mudanças históricas nos hospedeiros, que podem ocorrer através da migração ou de alterações nos tamanhos das populações, são os principais responsáveis pela demografia de P. falciparum. Diferenças temporais e espaciais nas estatísticas de saúde podem estar relacionadas às migrações humanas (Rogerson e Han, 2002). Locais que costumam atrair imigrantes, como por exemplo, centros urbanos, tendem a apresentar uma população menos saudável devido tanto a uma migração diferencial, como pela queda no nível de vida dessas populações (Verheij  et. al. ,1998).
Diversas doenças como malária, leshmanioses cutânea/visceral e esquistossomose se dispersaram na África e Europa graças às intensas migrações humanas que ocorreram entre e dentro desses continentes ainda na pré-história e idade antiga (Nozais, 2003). Algumas destas doenças foram introduzidas no Novo Mundo pelos colonizadores europeus e/ou pelos escravos africanos. Entre estas doenças está a oncocercose, que provavelmente entrou no continente americano (especificamente nos países que constituem a região do Caribe) através de escravos trazidos da África, sendo passada aos indígenas Ye’kuana que posteriormente a difundiram junto aos Yanomami (Moares, 1997).
A oncocercose é uma doença parasitária causada pelo helminto Onchocerca volvulus (Leuckart, 1893) e é transmitida por insetos da família Simuliidae. Dentro do corpo do hospedeiro os vermes adultos se localizam em nódulos fibrosos ou cistos subcutâneos e produzem numerosas microfilárias que permanecem sob a pele ou invadem os tecidos do globo ocular do hospedeiro, causando muitas vezes danos irreversíveis que levam a cegueira parcial ou total (Pessoa, 1969).
A área indígena Yanomami / Ye’kuana é atualmente o único local endêmico para o oncocercose no Brasil, com 32,4 % da população contaminada (Py-Daniel, 1997). Desde 1993, continuamente, estão sendo realizados estudos epidemiológicos nesta área indígena. A medicação com Ivermectina (inicialmente distribuída apenas nos Pólos de Saúde Xitei/Xidea (Roraima) e Toototobi-Balawaú (Amazonas), agora está sendo tomadas pelos Yanomami e Ye’kuana (elegíveis) residentes em todas as áreas determinadas como meso e hiperendêmicas dentro do território brasileiro, o quê provavelmente tem ajudado a diminuir a quantidade de vetores contaminados. Entretanto, movimentações periódicas desses indígenas (Yanomami/Ye'kuana) colocando-os em contato com outros indivíduos ou locais sem tratamento (especialmente nas comunidades dentro do território da Venezuela) podem ter papel crítico na re-infestação pela oncocercose. Em áreas focais de oncocercose do México e Guatemala é assinalado que os trabalhadores migrantes que cruzam a fronteira entre estes países, podem distribuir a doença para outras áreas (WHO, 1995). Em uma comunidade Yanomami, foi observada uma relação entre a distância percorrida durante movimentações e um aumento na probabilidade de re-infestação por O. volvulus (Souza, 2002). Dentre estas movimentações, as expedições de coleta e caça coletiva foram as que envolveram maior distância da comunidade e o maior número de indivíduos (Souza, 2002).
Para populações indígenas de diversas etnias, a carne oriunda da caça é a principal, se não a única fonte de proteína animal (Vickers, 1991), sendo indispensável para o seu equilíbrio nutricional, juntamente com o consumo de produtos da pesca e da coleta (Lizot, 1978; Colchester, 1982). Dentre as atividades anteriormente citadas, a caça, é a principal fonte de proteínas envolvendo, em muitos casos, deslocamentos longos com um grande número de participantes (Albert, 1997; Souza, 2002).
Assim, os principais objetivos deste estudo foram: determinar a importância relativa das caçadas como fonte de proteína e determinar o efeito das movimentações para caça na endemicidade de oncocercose em uma comunidade Yanomami.


MATERIAL E MÉTODOS

Área de Estudo
Realizamos este estudo na comunidade Yanomami de Watatás localizada no extremo norte do Brasil (2o36’29” N e 63o52’18” W), na base da serra Parima a 750m de altitude (Fig. 1). Segundo Huber et al. (1984) a vegetação predominante da região é floresta tropical densa de baixa altitude (600-1000 m) e floresta tropical de terras altas (acima de 1000m), no entanto ocorrem também florestas secundárias em diferentes estágios sucessionais, resultantes de roças abandonadas.
Na região existem 20 outras comunidades Yanomami a diferentes distâncias de Watatas, constituindo o Pólo Yanomami Xitei. Além de ser a comunidade mais populosa (167 indivíduos, vivendo em 38 grupos familiares ou yanos), Watatas é um lugar de atração para os Yanomami de outras comunidades devido à sua localização central, como também pela existência de um posto de saúde e uma pista de pouso. A região do Xitei foi classificada como hiperendêmica para oncocercose, com uma prevalência de 62,7%, sendo Thryrsopelma guianense e Psaroniocompsa incrustata os principais vetores nesta área (Py-Daniel, 1997; Py-Daniel et al., 2000). Desde o segundo semestre de 1996 são distribuídas, entre a população de Xitei/Xidea, doses de Ivermectina (Mectizan) (Py-Daniel et al., 1997). Entretanto, o grande número de não-elegíveis, constituídos basicamente por grávidas e menores de 5 anos que não recebem a medicação e o constante intercâmbio com pessoas e/ou locais onde não existe tratamento podem estar afetando o controle desta doença em Watatas.

Figura 1 - Mapa da T.I. Yanomami (que inclui a área Ye'Kuana) evidenciando as comunidades da região de Xitei/Xidea . A comunidade "4" assinalada no mapa de Py-Daniel et  al. 2000, como Koremisiapi-ú agora é denominada de Pohowarope.

Os Yanomami da região ainda mantêm sua forma tradicional de caçar, além do arco e flecha utilizando apenas cães em suas caçadas. As caçadas são realizadas de forma individual (ou em pequenos grupos de dois a três indivíduos que em geral vivem no mesmo Xapono) ou coletiva (grupos pluri-familiares). Este último tipo de caçada também conhecida como henimou ocorre em geral nos limites da comunidade, em distâncias superiores a 10 km e duram de 10-15 dias. 
Apesar dos Yanomami serem tradicionalmente semi-nômades, permanecendo numa área por no máximo 4-5 anos (Albert, 1997) esta comunidade está fixada na mesma área a pelo menos 12 anos. A área total utilizada pelos Yanomami de Watatas em suas caçadas e coletas é de no máximo 277 km2. Além de possuírem uma pequena área exclusiva para suas atividades, estes Yanomami não se deslocam para algumas direções devido a conflitos (históricos e/ou momentâneos) com algumas comunidades.

Coleta e Análise dos dados


Entre maio de 2002 e julho de 2003 foram realizadas oito excursões (com 20-35 dias de duração), nas quais Layme participou tanto nas caçadas como também na realização entrevistas com caçadores individuais e em cada Yano. Nestas entrevistas foram determinados a quantidade e biomassa de animais abatidos, técnicas de caça empregadas, direção, distância, duração e número de participantes. Com estas informações foi possível calcular o retorno energético das caçadas (kg/caçador/hora). As caçadas foram classificadas como sendo de curta duração, quando envolviam de 1-3 indivíduos e duravam apenas um dia ou caçadas coletivas de longa duração ou henimou quando envolviam mais de três indivíduos (em geral de diferentes yanos e/ou xabono) e duravam mais de dois dias. Também foram classificadas quanto a distância da comunidade, em muito próximas ou nos arredores (<3 4="" de="" distantes="" e="" km="" mais="" o:p="">
Nessas entrevistas também foram obtidas informações sobre origem e quantidade de outros itens animais consumidos. A distribuição dos diversos tipos de proteína animal nas categorias “caça”, “coleta” e “pesca” seguiu a classificação utilizada pelos próprios Yanomami.  Répteis e anfíbios foram considerados caça, enquanto que camarões, caramujos, larvas aquáticas de insetos e girinos foram classificados como produtos da pesca. Na coleta estão incluídos os diversos estágios larvais de insetos (borboletas, besouros e vespas). Para determinar a importância das caçadas em relação a outras atividades de forrageio do grupo para a aquisição de proteína, dividimos a freqüência do consumo de carne oriundo da caça, pesca e coleta pelo número total de entrevistas. 
Foi determinado o número de pessoas de Watatas caçando em “áreas de risco” (próximas às comunidades sem tratamento) ao longo de cada período do ano. Para cada movimentação de caçada foi atribuído um índice de movimento que constitui o produto da duração do movimento (em dias) pelo número de participantes. Este índice de movimento foi correlacionado às Taxas Mensais de Picada (TMP) dos dois principais vetores na área T. guianense P. incrustata (Py-Daniel et al., 2000). Maiores detalhes sobre os procedimentos de coleta, coloração e dissecação dos vetores são descritos em Andreazze e Py-Daniel (1999). Embora a atividade desses vetores possa variar bastante ao longo do ano, não existe uma grande variação nos padrões inter-anuais (Py-Daniel, dados não publicados).
O risco de re-infecção por oncocercose (RR) em cada caçada foi estimado através da seguinte fórmula: RR = AV* PPST *N onde, AV = atividade dos vetores, PPST= Proporção de Pessoas Sem Tratamento, N=número de participantes em cada caçada. O valor de AV é calculado multiplicando-se a taxa mensal de picada de cada um dos principais vetores pela duração do movimento e dividindo-se o valor resultante pelo número de dias do mês (Andreazze e Py-Daniel, 1999). Enquanto que a proporção de pessoas sem tratamento (PPST) corresponde ao número de pessoas que não tomaram Ivermectina (elegíveis e não elegíveis) dividido pela população total.
Os dados foram analisados no programa SYSTAT 8.0 (Wilkinson 1998), sendo inicialmente testados para verificar se respeitavam aos pressupostos dos testes, como  homoscedacidade e normalidade. Quando os valores encontrados não correspondiam à distribuição normal, eram transformados em logaritmos ou analisados por um método não-paramétrico correspondente. Foi usada Análise de Variância (ANOVA) ou Kruskall–Wallis para testar se existiam diferenças significativas na ingestão de proteína animal oriunda de caça, pesca e coleta, na quantidade de carne de caça obtida em diferentes períodos do ano e no risco de re-infecção por oncocercose em caçadas de longa duração que ocorreram próximas a diferentes locais. Usando correlação de Pearson relacionamos o risco de re-infecção de cada movimentação ao retorno energético da caçada.

Resultados

Existiu uma grande variação mensal na importância da caça, pesca e coleta como atividades para a obtenção de proteína (Fig. 2). A proteína oriunda da pesca teve nos Yanos entrevistados uma freqüência de consumo significativamente maior do que a coleta e a caça (ANOVA r2=0,423, F2,21=7,703, P=0,003). Por outro lado, a carne oriunda da caça apesar de ser menos freqüentemente consumida, tem em termos de biomassa um consumo médio significativamente maior do que aquelas oriundas da pesca e coleta. (ANOVA r2=0,434, F2,21=8,052, P=0,003; Fig. 3). Além disto, as atividades de pesca ocorreram ao longo de todo o ano, enquanto que a caça sofreu um efeito sazonal e tendeu a se concentrar nos meses que correspondem a estação chuvosa (U =  14,000, P=0,053).


Figura 2 – Variação mensal da freqüência de proteína animal oriunda de diferentes atividades nos Yanos de Watatas.






Figura 3 – Diferença no consumo médio de diferentes tipos de proteína animal em Watatas

Durante o período de estudo foram registradas 135 caçadas, a maior parte delas (N=123) foi realizada individualmente ou em pequenos grupos de até 3 indivíduos nos arredores da aldeia.  Os Yanomami de Watatas participaram de 12 caçadas de longa duração ou henimou, envolvendo 145 participantes. Apesar de serem menos freqüentes, nas caçadas do tipo henimou foram capturados animais de peso significativamente maior do que nas caçadas em torno da aldeia (U=  61,50, P<<0 o:p="">
A maior parte dos henimou ocorreu entre os meses de agosto e novembro. Neste período também as caçadas foram mais longas e contaram com um número maior de participantes (Fig. 4). Houve uma correlação parcial entre essas caçadas de longa duração e as taxas mensais de picada de T. guianense e de P. incrustata quando foram analisadas todas as movimentações (r= 0,494 P<0 a="" an="" ap="" dados="" dos="" esta="" evidente="" extremo="" fica="" ficou="" foi="" forte="" gr="" i="" lise="" n="12)." ncia="" ponto="" quando="" removido="" s="" ser="" significativo="" tend="" um="">r
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Figura 4 - Variação no número de participantes e na duração (em dias) das caçadas realizadas pelos os Yanomami de Watatas entre maio/2002 e julho/2003.

Figura 5 - Variação mensal nas movimentações yanomami para caçadas (número de participantes x duração) e taxa mensal de picada (TMP) em T. guianense P. incrustata.


A maioria das caçadas de longa duração ocorreu em áreas próximas à comunidade do Tirei. Entretanto, as caçadas mais longas e com o maior número de participantes foram em áreas próximas à comunidade de Pohowarope (Tabela 1.). Exceto pelas caçadas de longa duração que ocorreram próximas a Serra Parima (área sem presença de outras comunidades) todos os henimou ocorreram próximos à comunidades com índices de cobertura de tratamento similares aos de Watatas (U = 170,00, P= 0,25).


Tabela 1 – Médias do número de participantes e da duração das caçadas henimou realizadas pelos Yanomami de Watatás e cobertura média de tratamento para diferentes locais onde as caçadas se realizaram.

Ocorreu uma diferença significativa no risco de re-infecção nas caçadas realizadas próximas a diferentes localidades (ANOVA= 70,9, F3,8=6,493, P=0,015). Indivíduos que participaram das caçadas que ocorreram próximas a serra Parima tiveram uma exposição bem inferior de re-infecção por Onchocerca volvulus (Fig. 6). Além disto, houve uma forte correlação negativa entre risco de re-infecção e o retorno energético das caçadas de longa duração (r=0,85, P=0,02), ou seja, está havendo uma tendência das caçadas com maior retorno energético se concentrarem em locais com menor risco (Fig. 7).

Figura 6 - Valores médios do risco de re-infecção por oncocercose nas caçadas ocorridas em diferentes direções (barras correspondem ao erro padrão da amostra).

Figura 7 - Relação entre o retorno energético das caçadas (km/h/caçador) e o risco de re-infecção em cada movimentação de caçada.

DISCUSSÃO
A alta freqüência de pesca como fonte de proteína para os Yanomami de Watatas pode ser explicada por sua localização e pela existência de lagoas artificiais nos arredores da comunidade (criadas durante a construção da pista de pouso). Na época das chuvas essas lagoas se comunicam com o rio Parima, disponibilizando assim fartas áreas de exploração aquática (sapos, peixes, etc.) por parte dos Yanomami.
Apesar de ser um recurso menos previsível que a pesca, a caça de subsistência é uma importante fonte de proteína para os Yanomami de Watatas, pois a comunidade esta localizada em uma região que corresponde à cabeceira de rios, onde os peixes em geral são muito pequenos. Por outro lado, existe um baixo rendimento de caça próximo à comunidade e uma maior taxa de captura de animais maiores em caçadas do tipo henimou. Isto pode ser um indício de que as populações animais estão (ou estiveram) sujeitas a uma forte pressão de caça nas áreas mais próximas (Alvard et al., 1997) e demonstra a importância das caçadas de longa duração como forma de ter acesso a presas de qualidade energética superiores.
As caçadas de longa duração envolveram um maior número de pessoas nas direções sudeste (Tirei e Homoxi) e nordeste (Pohowarope). Não observamos nenhum henimou dos Yanomami de Watatas para locais próximos às comunidades ao sul que fazem fronteira com a Venezuela, embora existam informações de que caçadas ocorriam nestes locais em um período anterior ao presente estudo (Souza, 2002). Além disto, parece estar havendo uma tendência das caçadas se realizarem cada vez mais freqüentemente na Serra Parima uma área que era historicamente evitada pelos Yanomami de Watatas, devido à presença de Xamathari (grupos Yanomami considerados inimigos). A escassez de mamíferos de médio e grande porte nos arredores de Watatas, assim como conflitos com outras comunidades e/ou uma maior densidade de ocupação (e consequente sobreposição de territórios para caça) por outras comunidades pode estar induzindo mudanças nos padrões de deslocamento dos henimou realizados pelos membros de Watatás.
A princípio o risco de re-infecção por O. volvulus durante as caçadas realizadas para os locais acima citados pode ser considerado mínimo pela inexistência de comunidades próximas (Serrra Parima) ou similar ao que ocorre em Watatas, pois a cobertura de tratamento é praticamente a mesma. Por outro lado, essas comunidades localizadas a sudeste possuem maior chegada de visitantes provenientes de áreas não tratadas (Venezuela), que sempre trazem consigo novos aportes de filárias para os vetores presentes na área. Além disto, a maior parte dos henimou ocorreu entre agosto e novembro, quando as chuvas começam a diminuir na região, os rios começam a baixar seu nível e existe uma maior quantidade de T. guianense picando. Esta espécie de simulídeo é a mais importante na transmissão de O. volvulus na área nesta época do ano (Py-Daniel et al., 2000).
Neste estudo demonstramos que as caçadas além de sua importância no sistema sócio-cultural Yanomami podem ter um papel relevante na re-infecção por O. volvulus em uma determinada área. Desta forma, estudos epidemiológicos em populações humanas que incluem explicitamente fatores sociais e ecológicos têm maiores chances de descrever os padrões de disseminação e/ou re-infecção de uma enfermidade do que aqueles que se restringem às informações sobre o comportamento dos vetores e do agente etiológico.
Um conjunto de observações, estritamente relacionadas com a importância das condições de Watatás é de que o fato, aparentemente positivo, da população desta comunidade, em suas movimentações de caça, não estar aumentando a probabilidade de aquisições de novas infecções de oncocercose (que representa uma diminuição de um contato mais íntimo com as áreas de comunidades não tratadas) é contraposto pela presença, em Watatas, de um pequeno hospital, que serve para atender todas as populações da área de Xitei/Xidea, inclusive as provindas da Venezuela. Isto na realidade quer dizer que: Por problemas sociais eles evitam irem para regiões aonde existem maiores índices de positividade para oncocercose, no entanto as facilidades de saúde oferecidas pelos napëpë (não Yanomami) instalados na área de Watatas, fazem com que os membros das comunidades não tratadas venham até ela, mantendo assim uma maior taxa de vetores positivos, que re-infectam a própria comunidade de Watatas (e outras que por ventura tenham feito parte dos caminhos de deslocamento dos membros das comunidades localizadas na fronteira da Venezuela). Watatás, portanto, apresenta-se como uma comunidade diferenciada em relação as outras comunidades de Xitei/Xidea: 1. Apresenta presença permanente de napëpë (FUNAI e Diocese-RR); 2. Como citado anteriormente, é a única que possui uma pista de pouso de aviação. Com base nestes fatores ocorre um condicionamento a um maior sedentarismo, tendo em vista que indicam uma maior constância na possibilidade trocas de artigos, fato este demonstrado pelo longo tempo de permanência no mesmo lugar (mais de 12 anos). 3. Geograficamente ocupa uma posição intermediária entre as comunidades que habitam ao sul, área mais densamente povoada (fronteira com a Venezuela) e as que habitam ao norte (área de ação do Pólo de Saúde Surucucu, menos povoado na sua parte sudoeste), e tendo a oeste a serra de Xitei que historicamente representa área de perigo, ou seja, pouco utilizada e desabitada, para qualquer tipo de movimentação. 4. É um centro de atração para as demais comunidades que visam obter algum tipo de cura, principalmente para malária e diarréias, que não são possíveis de serem feitas pelos Xapores. 5. É um centro de atração para atender as necessidades de obtenção de instrumentos (machados, facões, enxadas) que já fazem falta parte desenvolverem os seus roçados. 6. É um centro de atração para participarem de diferentes tipos de reuniões e cursos (educação, saúde) oferecidos pelos napëpë.
Estes fatores diferenciativos de Watatas indicam que qualquer tipo de estudo epidemiológico desenvolvido nesta comunidade, que vise criar uma caracterização para Xitei/Xidea, como um todo, deve acrescentar, no mínimo, uma outra comunidade que não tenha tantas influências de "não Yanomami".
No entanto, se o governo venezuelano efetivar um constante atendimento de saúde, incluindo aí malária e oncocercose, nas comunidades que vivem no alto Orinoco, o aspecto de saúde deve ter menor influência na manutenção da qualidade de vida da comunidade Watatas.


AGRADECIMENTOS

         Agradecemos a todos os membros das comunidades de Xitei/Xidea que permitiram o desenvolvimento deste trabalho, como também a FUNAI, a Diocese de Roraima, e a FUNASA. Este estudo também não teria sido possível sem o apoio do financeiro do CNPq através do Programa de Capacitação Institucional (PCI/INPA).

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(15.11.2019)

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